Reflexão matinal “O Barulho do Silêncio
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Aug 6, 2025
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Arte
Literatura
Filosofia
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Por que o silêncio dói tanto às vezes? Por que as palavras não ditas pesam mais que as faladas?
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Estava esses dias a folhear o Tao Te Ching quando uma passagem me fez parar.
Algo sobre a Terra, que apesar de ser duradoura e de que nos sustenta, mesmo ela faz barulho apenas por um tempo, com chuvas e trovões, mas passa e dar lugar ao silêncio.
Essa frase ficou em ressonância ali numa parte quentinha da mente. O que me levou a pensar.
Por que tememos o silêncio tanto quanto tememos o relâmpago? Por que dói tanto, às vezes? Por que as palavras não ditas pesam mais do que as faladas?
Fico a pensar nisso, e peco eu mesmo enquanto escrevo para não calar, ainda que sob o pretexto de observar as pessoas a preencherem cada pausa com algum som, uma imagem, um texto, qualquer coisa que afaste o vazio aparente do não-falar.
Claro, em um mundo cercado de mistérios, incertezas e inseguranças, o silêncio assusta.
Assusta porque no vazio das palavras, das atitudes, somos obrigados a nos encontrar, a ver o que não queremos ver.
E nem sempre gostamos do que encontramos ou do que vemos.
E assusta ainda mais quando somos silenciados, mas não falaremos disso aqui.
Há, porém, uma sombra no silêncio. Às vezes ele vem disfarçado de covardia, de egoísmo.
O silêncio que machuca, e não é contemplativo. O que nega, o que pune, o que se esconde atrás de uma falsa superioridade, ou inferioridade.
Como Bartleby, “O escrivão” de Melville, com seu eterno "Preferia não fazer".
Seu silêncio gradual como uma forma de resistência, mas também de desistência.
Ele para de participar do mundo até que o mundo simplesmente o esqueça.
Vivemos num mundo que nos arranca de nós mesmos, que não deixa nem uma muda de silêncio contemplativo florescer. Tudo precisa ser produtivo, mensurável.

Mas e se esses pequenos momentos de silêncio contempaltivos fossem pequenos gritos distraídos de resistência contra a pressa de tudo?
Essa pergunta me faz lembrar de Cordélia, de Rei Lear. Quando seu pai decide dividir seu reino entre suas três filhas, Goneril, Regan e Cordélia, com base na declaração de amor que cada uma fizer, sua generosidade correspondente fará.

As duas filhas mais velhas, buscando bajulá-lo, exageram em suas demonstrações de afeto, enquanto Cordélia, conhecida por sua sinceridade, responde simplesmente com "Nada, meu senhor".
Essa resposta, embora verdadeira, é interpretada pelo pai como uma falta de amor, levando-o a deserdá-la e bani-la.
O Rei Lear, cego pela lisonja, não consegue perceber a profundidade do amor de Cordélia, que se expressa não em palavras vazias, mas em ações.
Mas se não há algo a dizer, por que deveríamos? Por que todo silêncio precisa ser justificado?
Talvez porque tenhamos esquecido que o silêncio também comunica. O silêncio é um símbolo, o símbolo mais importante, e um símbolo diz mais que mil explicações.
Há uma sabedoria no não-dizer que nossa época parece perder, por deturpar e superficializar.
Onde declarações públicas e sociais são mais importantes que gestos sinceros, autênticos e verdadeiros, como os de Cordélia.
Curioso como, por exemplo, uma criança pequena não sabe ainda o que é silêncio ou barulho, ela simplesmente vive o presente, chora, esperneia, dorme, balbucia, gargalha, quando o faz, faz de corpo inteiro.
É autêntica, pois, quando estamos verdadeiramente presentes, a viver o momento, o grito ou o silêncio vem naturalmente.
Falamos com o corpo, com os olhos, com gestos que dizem mais que frases inteiras.
E quase sempre quando fazemos algo verdadeiramente importante e significativo em nossas vidas, estamos em silêncio, quando não, em dor ou prazer gememos, como crianças, outra vez, não com palavras que necessitem de justificativas.
Quem não se lembra do ditado "Quando tem criança e silêncio na casa, algo estão aprontando"?

A criança concentrada está tão absorvida no presente que o resto do mundo simplesmente desaparece.

Nós, adultos, vamos aos poucos perdendo isso, em nossa próprio ato de destilação ética ou moral, até recuperar na velhice, o silêncio recebido do abandono e da perda.
Claro, toda destilação e depuração tem sua razão de ser, pois não pretendo com isso justificar o grito da loucura ou dos atos inconscientes ou inconsequentes.

Mas enfatizar que enchemos cada momento de nossa juventude imatura de ruído mental, de explicações desnecessárias, de ausências de significado, que esquecemos que estar presente é, naturalmente, silencioso, é simples.
Bom, no fim, talvez, seja isso sobre isso, o direito de ser simples, isto é, o silêncio contra a ditadura do ruído.
O silêncio de existir sem comentários, de sentir sem análises, de ter do lado alguém que saiba estar presente em silêncio, amoroso e sincero, tanto quanto os animais, quando boas companhias, sabem dessa delicadeza.
Mesmo a terra, o sol, e os demais astros sabem que não precisam se justificar.
Eles fazem seus barulhos necessários e depois se aquietam.

Bom, enquanto escrevo esse texto, amanhece chuvosa minha querida Boa Vista, Roraima.
E admito, sou hipócrita. Pois não pretendo desmoralizar a ditadura do ruído promovendo a ditadura do silêncio.
Mas é um bom momento para ouvir a chuva no telhado, tomar um café, ver as nuvens passar.
Claro, se você precisa usar do silêncio como arma para magoar a si mesmo ou aos outros. Então não entenderia o porquê de fazer isso.
Mas se compreende a importância do silêncio, vamos juntos estar presentes aqui e agora.
Seja você mesmo, esvazie-se, sem celular, sem música, sem a necessidade de preencher o tempo com pensamentos. Apenas você e o momento, em companhia do silêncio, ainda que por um segundo.
Depois, se quiser, me conta como foi encontrar esse silêncio. Ele assustou ou acolheu?
Deixe sua experiência nos comentários. Quem sabe criamos uma pequena revolução silenciosa, um momento de cada vez.