Reflexão matinal “O Barulho do Silêncio

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Aug 6, 2025
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Arte
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Filosofia
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Por que o silêncio dói tanto às vezes? Por que as palavras não ditas pesam mais que as faladas?
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“Quarto em Nova York”, por Edward Hopper (1932).“Quarto em Nova York”, por Edward Hopper (1932).
Quarto em Nova York”, por Edward Hopper (1932).
Estava esses dias a folhear o Tao Te Ching quando uma passagem me fez parar. Algo sobre a Terra, que apesar de ser duradoura e de nos sustentar, mesmo ela faz barulho apenas por um tempo, com relâmpagos e trovões, mas passa e também dá lugar ao silêncio.
Essa frase ficou quentinha ali num canto do coração. E me fez questionar: por que tememos o silêncio tanto quanto tememos o relâmpago? Por que as palavras não ditas pesam mais do que as faladas?
Fico a pensar nisso, e peco eu mesmo enquanto escrevo para não calar, ainda que sob o pretexto de refletir. Vejo pessoas preencherem cada pausa com algum som, uma imagem, um texto, qualquer coisa que afaste o vazio aparente do não-falar. Em um mundo cercado de mistérios, incertezas e inseguranças, o silêncio assusta porque no vazio das palavras somos obrigados a nos encontrar, a ver o que não queremos ver. E nem sempre gostamos do que encontramos.
E nem sempre gostamos do que encontramos ou do que vemos.

O silêncio é plenitude, contemplação, unidade. Quando não é ausência, é necessidade, medo, divisão.
E assusta ainda mais quando somos silenciados, ou quando o silêncio é usurpado por uma violência disfarçada de quietude. Mas, não falaremos disso aqui.
Há, porém, diferentes sombras que se projetam a partir do silêncio diante da luz. Às vezes é uma sombra de covardia, de egoísmo, que pode machucar. O que nega, o que pune, o que se esconde atrás de uma falsa superioridade, ou inferioridade.
Como, por exemplo, Bartleby, “O escrivão” de Melville, com seu eterno "Preferia não fazer".
Seu silêncio gradual como uma forma de resistência, quem sabe até de sobrevivência, mas acima de tudo também de desistência.
Ele para de participar do mundo até que o mundo simplesmente o esqueça. É um silêncio em busca de abandono, não de presença.
Esse tipo de silêncio se encontra em muito do que fazemos hoje. Habitamos um mundo que nos arranca de nós mesmos, que não deixa nem uma muda de silêncio contemplativo florescer.
“Bartlleby, the scrivener” homage to Melville, por Roberto Ricch (2019).“Bartlleby, the scrivener” homage to Melville, por Roberto Ricch (2019).
Bartlleby, the scrivener” homage to Melville, por Roberto Ricch (2019).
Tudo precisa ser produtivo, mensurável, explicado. Mas e quando os pequenos momentos de silêncio são, na verdade, gritos distraídos de resistência contra a pressa de tudo? Uma recusa a participar da corrida incessante? Essa sede interminável diante de um poço que está sempre cheio. Como se a água no poço precisasse fazer o mesmo barulho que uma cachoeira para não termos o medo de ficar com sede. Afinal, é preciso gritar? E gritar pra quê?
Esse pensamento me faz lembrar de Cordélia, de Rei Lear. Quando seu pai decide dividir seu reino entre suas três filhas, Goneril, Regan e Cordélia, com base na declaração de amor que cada uma fizer, sua generosidade correspondente fará.
“Cordélia”, por William Frederick Yeames (1888).“Cordélia”, por William Frederick Yeames (1888).
Cordélia”, por William Frederick Yeames (1888).
As duas filhas mais velhas, buscando bajulá-lo, exageram em suas demonstrações de afeto, enquanto Cordélia, conhecida por sua sinceridade, responde simplesmente com "Nada, meu senhor".
Essa resposta, embora verdadeira, é interpretada pelo pai como uma falta de amor, levando-o a deserdá-la e bani-la.
O Rei Lear, cego pela bajulação, não consegue perceber a profundidade do amor de Cordélia, que se expressa não em palavras vazias, mas em ações silenciosas e verdadeiras.
Mas se não há algo a dizer, por que deveríamos falar? Por que todo silêncio precisa ser justificado?
Talvez porque tenhamos esquecido que o silêncio também comunica. O silêncio é um símbolo e um símbolo diz mais que mil explicações. Na música, a pausa é tão importante quanto a nota.
Há uma sabedoria no não-dizer que nossa época parece não recordar e, com miopia, só vê superficialmente.
Onde declarações públicas e sociais são mais importantes que gestos sinceros, autênticos e verdadeiros, como os de Cordélia.

Curioso como, por exemplo, uma criança pequena não sabe ainda o que é silêncio ou barulho, ela simplesmente vive o presente, chora, esperneia, dorme, balbucia, gargalha, quando o faz, faz de corpo inteiro.
E a criança é autêntica, pois, quando se está verdadeiramente presente, a viver o momento, o grito ou o silêncio são o mesmo movimento.
Falamos com o corpo, com os olhos, com gestos que dizem mais que frases inteiras.
E quase sempre quando fazemos algo verdadeiramente importante e significativo em nossas vidas, estamos em silêncio, quando não, em dor ou prazer gememos.
Há um ditado popular interessante que diz "Quando tem criança e silêncio na casa, algo estão aprontando".
“Um silêncio eloquente”, por Lawrence Alma-Tadema (1890).“Um silêncio eloquente”, por Lawrence Alma-Tadema (1890).
Um silêncio eloquente”, por Lawrence Alma-Tadema (1890).
Veja, a delicadeza em ser criança que está concentrada a torna tão absorvida no presente que o resto do mundo dito real e justificado simplesmente desaparece. E de fato nunca existiu.
"O Silêncio”, Carel Weight RA (1965)."O Silêncio”, Carel Weight RA (1965).
"O Silêncio”, Carel Weight RA (1965).
Nós, adultos, vamos aos poucos perdendo isso, em nossa próprio ato de destilação ética ou moral, até recuperar na velhice, o silêncio recebido em forma de abandono e de ausência.
Claro, toda depuração tem sua razão de ser. E, mais uma vez, é necessário parar para “ouvir” o silêncio, que a todo momento nos comunica sua pureza.
“O sol da manhã”, por Edward Hopper (1952).“O sol da manhã”, por Edward Hopper (1952).
O sol da manhã”, por Edward Hopper (1952).
Em nossa juventude aprendemos a preencher o espaço vazio entre dois pensamentos com ruído mental, com pensamentos deturpados, com medo da divisão que ilusoriamente acreditamos que está acontecendo conosco.
E cheio de explicações desnecessárias, de ausências de significado, construímos um castelo de pensamentos superficiais e esquecemos que estar presente é, naturalmente, silencioso e simples.
Chamamos o rei desse castelo de adulto responsável de si. Quanta ilusão.

No fim, talvez tudo se resuma ao buscar ouvir com simplicidade, humildade e presença. E essa busca se torne a própria força do silêncio que urge contra a ditadura do ruído. E existimos autênticos, atenciosos, pacíficos.
Como o Sol, os planetas e os demais astros conhecem a “música das esferas”. Eles fazem seus barulhos necessários e também se aquietam.
“Fidelidade”, por Briton Riviere (1869).“Fidelidade”, por Briton Riviere (1869).
Fidelidade”, por Briton Riviere (1869).

Bom, enquanto escrevo esse texto, amanhece chuvosa minha querida Boa Vista, Roraima.
E admito, não pretendo com esse texto promover a ditadura do silêncio.
Mas é um bom momento para ouvir a chuva no telhado, tomar um café, ver as nuvens passar. Encontrar o silêncio nesses movimentos.
Claro, se você precisa usar do silêncio como arma para magoar a si mesmo ou aos outros. Então não entenderia o porquê de fazer isso.
Mas se compreende a importância do silêncio, vamos juntos estar presentes aqui e agora.
Seja você mesmo, esvazie-se, sem celular, sem música, sem a necessidade de preencher o tempo com pensamentos. Apenas você e o momento, em companhia do silêncio, ainda que por um segundo.
Depois, se quiser, me conta como foi encontrar esse silêncio. Ele assustou, ou acolheu?

Deixe sua experiência nos comentários. Quem sabe agora possamos compartilhar de uma pequena revolução silenciosa, um momento de cada vez.
Críticas, elogios ou sugestões?
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